segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

ah... tempo...

um gosto
de tempo
salpica
os dedos

fragmentos
verdes
amarelos
vermelhos

um tudo
que passa
entre o ontem
e o hoje

um tudo
que voa
entre o nunca
e o sempre...

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

das fases...


se visto-me
em lua

é escura
minha face nua

e nego-me
um meu, um tua

feito prostituta
feito cio na rua

desfaço-me
disfarço-me

e volto ao útero
pura...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

prece

sem saber
dos sonhos
o onde

amanhece
e anoitece

esfria
aquece

e uma amnésia
os olhos ilhados
esperam...

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

que vício...


escrever, eu preciso
na rua, em casa, no chuveiro
ou na lata do lixo

essa ânsia de sair
voar entre flores e pedras
engatilhando versos

não quero ir além
não, não, não é isso
quero meu amém

encontrar de mim, a verve
fazer dormir meus vermes
em potes de crimes abertos

é isso que apetece-me
esse grito rouco no meio da faca
fugindo do sol e abrindo palavras

sangrar meus dedos
escavando letra à letra
valas e mais valas

desde que
não abram suas bocas
e não falem...

é no silêncio da carne
onde a tela branca
faz-se escrava

escrever é vício
que não se apaga
com sabão e lágrimas

escrever é êxtase
que não se acaba
em gemidos e água...

terços...


teço
tristezas
e tríades

teço
tantras
e tristuras

e, em tua tez
tremulam
tessituras ( minhas )

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

das águas


se nado em teus olhos
sou toda malemolência

sabes desse jogo
o trigo e o joio

entre meus mares e tua boca
quedam-se meus portos

e em tua língua
despejo minha essência...

domingo, 7 de dezembro de 2014

dos medos...


então é isso
finda mais um domingo...
e a carne finge sorrisos

e teme, como teme
ser vista nua e crua
na segunda...

sábado, 6 de dezembro de 2014

nem sei...

sabe-se lá
se no limbo
existe a fala

ou se os pensamentos
em simples silêncios
casam-se

se há um espaço
onde os olhos, molham-se,
e acham-se

onde sobem
e descem as asas
no arfar das metáforas

sabe-se lá
se faz frio onde é quente
se faz-se quente onde é hábito

se a noite e o dia
lambem-se e bastam-se
entre o nunca e o sempre

se procuram-se os laços
entre sílabas sem rima
e ímpares

onde o êxtase
cala da boca
a palavra

e as almas
descartam do tempo
a carne...

sabe-se lá...

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

descarte


ando tão pobre
de navalhas

se me deparo
com uma

digo, boa noite
bom dia, boa tarde

não, elas
não sabem

tem fome delas
minha carne...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

dos dizeres


não sei se em risos
disseram-me monalisa

ela que em tempo
fez-se em tez, um rito

ela que sem tempo
partiu ao meio, o gêmido

se eram em pecados
suas raízes

se eram sacrossantos
seus delitos

nada disse...

só sei, ou imagino que sei
da  sua boca, o mito...

maçã...



rubra é a cor que te cobre
doce fruto suculento
seu aroma faz a oferenda,
a língua entre os lábios move-se,
salivante entre os dentes
em desejos contorce-se

sedenta, faminta, seduzida...
a boca se abre lentamente
lambisca, mordisca
a pele carmim
a carne macia

degusta
o néctar exalado,
cheiro e delírio
inalados,

 saboreada
fruta do cio
ontem, hoje
amanhã, maçã...

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

sou

por quê tenho de viver
entre as frestas das janelas
se não sou das entrelinhas
o que fede e o que sobra?

quando e onde
deixaram-me na sarjeta
se sou de mim, mãe, pai
filha, começo e fim?

como ao acaso
deitar-me em vis palavras
se, delas, não quero nem o sol
nem as brasas e nem as larvas?

ah, se sou o que sou
sem ser muito ou pouco
ou quem sabe muito pouco
sou eu, sou eu e sou...

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

das dores

e se há no peito
uma  dor...

que cubra-se
de cascas

negue ser pétala
negue ser febre

coloque-se
entre aspas

e finja
ser pedra...

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Quem sabe no Natal...




Esperava pelo pai todos os dias. Por mais que insistisse a mãe, não arredava pé do mesmo ritual. O vestidinho já desbotado, as sandálias apertadas. Fosse frio, buscava um casaquinho, fosse calor, prendia os cabelos. Vaidosa, olhava-se no espelho antes de ir para o portão. Roubava o batom da mãe, o perfume e estava pronta. Quatro anos de vida e tão longas e pesadas histórias.
- Amanhã ele virá, mamãe, falei para professora que não irei na aula pois vou passear com papai.
Os olhos claros foram se tornando turvos, caídos. Irritadiça ficava atenta ao toque do celular da mãe.
Semanas, meses e nada. A presença tão desejada, castigava-a com a ausência.

- Seu pai ligou, pena que você estava na escola... Não quero que fique triste, ele não poderá vir, tem de trabalhar por muito e muito tempo.
Mentira. A situação estava insustentável.
Fitou a mãe como se soubesse que nem isso ele fizera, não ligara, não se comunicara, não se mostrara interessado nela.
- Acho que ele virá no Natal...
Abraçada à mãe, os olhinhos cheios de lágrimas tentavam encontrar um porto seguro, um tempo seguro onde os homens não esquecem-se das pequenas almas que os esperam.

Não voltou mais ao portão. Quem sabe no Natal...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

escarnio...

tenho chapiscasdo vísceras
em vias de fato ou nas saias d'agua

coágulos em muros brancos
tintas disfarçando gritos

e se não percebem o que digo
não lamento, não ligo

cansam-me as belas faces
cansa-me o raso das falas

ah, como canso-me
da carne...

terça-feira, 25 de novembro de 2014

da poesia...



e vem meio manca
meio mantra, meio santa

arregaçando das palavras
entranhas e  ancas

libidinosa,
sinuosa

finge uma prece, uma prosa
um hálito de rosas

e sangra..

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

dos imãs...


rouba-me a boca
e não ouso uma rima
 pobre e oca

dizem tanto do amor
e ele me faz assim
tão boba...

domingo, 23 de novembro de 2014

bastarda


cuidarei de minhas poesias
tal qual mãe em parto

pois, se aborto-me,
entre as letras amorfas
vejo meu retrato

são cacos, tragos
fiapos, farrapos, espasmos
caos e nacos

um nada entre metáforas,
escorrido e mal acabado

quero um parto
de úteros não meus
e de fetos alheios

um  punhado de versos
sem os tons de vermelho
sem o meu espelho

uma poesia de sins
filha do acaso, filha bastarda
uma poesia...  sem mim

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

estridente...


desmembro
novembro

e em cada lembro
um membro

e em cada membro
um ente

em cada ente
um antes

e foram-se os membros
e foram-se os entes

e foram-se os antes
e foram-se as lentes

entre dentes
sangro, novembro...

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

das asas...

qual o nome da dor
qual o nome da flor?

edith
frida

silvia
virginia

eram tão raras
as rosas

eram tão fartas
as mágoas

que vício
que vício

um último trago,
um último passo

uma overdose de vida
e o voo, livre...

39



entre um pio e outro
tecem homens e pássaros
a sinfonia do hoje

e calam-se, os ontens...

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

maktub

sem saber
se havia luvas

expuseram-se
as mãos ao mundo

e ele, o mundo
cruel e sujo...

contaminou das mãos,
olhos  e cruzes

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

dos espectros...


levantam-se as palavras
entre letras mortas e lázaras

metamorfose
de quem foi pássaro

metamorfose
de quem não tem face

e se falo da morte
é nela que encontro asas

de que têm medo os nomes?
de que têm medo as frases?

se nessa mesma morte
abrem-se os céus da boca

se nessa mesma morte
esquartejo meus olhos ocos?

se nessa mesma morte
caminham ontens e hoje?

e vejo...
o que não foi dito

e acho graça
do que foi destino

e desprezo e desprezo
o que ainda vive...

sábado, 8 de novembro de 2014

dos ais..

por onde
respingo
ais

há um hálito
maldito
do tanto faz

manchas vermelhas
em histórias
brancas

o que sabem
os reles mortais
dos dedos que lambem?

o que sabem
covas tão rasas
das flores que mancam?

por onde
respingo
ais

há sempre
bocas famintas
de sangue...

terça-feira, 4 de novembro de 2014

...

recolho-me
ao ovo

entre as cascas
do poema

sem ser clara
sem ser gema

escondo-me

domingo, 2 de novembro de 2014

eis que...


porque me desnudam as letras
não quero se não, olhos alheios

tal qual uma música sem dono
sem endereço, sem nome, sem freios

eis que vejo-me solta
a mercê de tantas veias

ora sou uma, ora sou duna
areia, estátua, pedra, devaneio

e se prendo-me aos medos
arranco-os sem raízes, ao meio

e sangro e sangro
num êxtase do desapego...

porque me desnudam as letras
quero de poesias, meu leito...

sábado, 1 de novembro de 2014

fagulhas

e no mormaço
a fala, os olhos, as brasas
do que não foi apagado,

indignadas as palavras
buscam nas cinzas, as asas,
e acham...

das esferas...


rezemos

sem pressa
às velas

é novembro
senhor das lápides

aos mortos
ano novo, tinta nova

é novembro
aos ossos, uma festa

às almas,
o céu ou o inferno?

e essa saudade
sem barcos, sem respostas...

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

catarse


trancasse meus gritos
em lugar ermo, inóspito, sujo
voltariam feito lâmina, de susto

e em palavras escritas
essas que não profiro e não digo,
desenterrariam feridas

se me dissessem do seu cheiro
se me dissessem do seu gosto
se me dissessem rostos

sempre e sempre
seriam letras e mais letras
que aqui e ali, vomito...

terça-feira, 28 de outubro de 2014

tanto faz...

por quê tantos ais
por quê tantos varais?

exclamações
letras maiúsculas

interrogações
saias justas

e esse cansaço
sem pés, sem jazz

e o velho conhecido
tanto faz, tanto faz

de resto
é juntar os engasgos

tatuar uma prece
no avesso da pele

jogar os búzios
sangrar os pulsos

de joelhos, tecer esperas
em nuvens que não gestam

quem sabe
ensaiar uma lápide

um nome feio
um aborto ao meio

tanto faz
tanto faz...

domingo, 26 de outubro de 2014

assim...



outubro
sem chuvas
com urnas

curva-se

sob o manto das mentiras
pesam-lhe os dias

que venha novembro
das velas e das lápides
 rostos sem nome

 flores de plástico

a encilhar a vida...
a beber os mortos

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

do abandono...


e ladram
e cansam-se
e calam-se

não querem palmas
não querem pedras

um ou outro afago
um  bocado de água
comida no prato

tão pouco
tão nada

aos cães abandonados, basta...

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ponto a ponto...


o que é lusco
o que é fusco
busco

o que é torpe
o que é torto
recolho

passos, laços
nacos, pedaços, ferrugens
ferrolhos

aqui e ali
na ponta da rima
cacos costuro

sábado, 18 de outubro de 2014

das profecias...

"dizei uma palavra
e serei salva"

do sangue
o mistério

das linhas
a palma

da lança
o alvo

da poesia
a pele

 da carne
a alma...

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

da quietude...

finge o felino
ser uma esfinge noturna
e o escuro mia

os ratos?
espiam e expiam...

sábado, 4 de outubro de 2014

com tato...

um véu
rente aos céus

de azul lampejo
de vermelho medo

a pedir aos dedos
boca, língua e beijos...

um véu
rente ao mel

de branco segredo
de verdes desejos

a pedir às letras
gosto, toque e cheiro...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

né?

tudo o que queria
era um pouco de açúcar

um pedaço de pão
e uma pitada de sal

café com leite, arroz, feijão
tomate, couve e almeirão

uma cama, um fogão
livros e mais livros

água doce
e roupa no varal

para companhia
um cão, um gato, uma galinha

um punhado de siêncios
e muita poesia...

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Das culpas...

As rodas comiam o asfalto com fome e com pressa. A noite favorecia aos devaneios, o motorista ao meu lado, tão conhecido por mim, fazia a troca de marchas sem piscar, sem pestanejar. Engraçado, em raras situações eu sentia que sua mente esquizofrênica dava-lhe paz, dirigindo era uma delas.
Talvez pela configuração dos signos, a minha trouxe-me essa empatia, essa intuição que me assola, que me castiga, que me tortura. Poucas são as pessoas que fito, que observo e não consigo vislumbrar suas essências, diria que são quase exceções.

Existem homens com desejos tantos, com fetiches tantos, com gestos tantos e inimagináveis, a literatura, a internete estão recheadas deles. Mas ainda não li, não vi, alguém que fosse fissurado no toque puro e simples de um nariz. Sim, era esse o maior gesto e a maior prova de amor do homem ao meu lado. Entre um quilômetro e outro estendia sua mão ao meu rosto e seus olhos tocavam os meus. E me diziam do prazer de me sentir de me perceber ao seu lado através de um toque em meu nariz. Havia dias que me ressentia, doia-me o bendito nariz. Por quantos anos isso? Muito e muitos, brincava e sorria me dizendo que só eu lhe proporcionava esse prazer, os outros narizes não eram o meu. Quando o evitava, quando evitava seu toque, era como tirar-lhe o sentido das  mãos, cortava o cordão umbilical que nos unia.

E ali estávamos, os dois embalados por Beatles, sempre Beatles. Ele, conhecia todas as músicas, tocava-as todas. E hoje, qualquer menção de Lennon, Paul, Ringo, George me levam ao passado. Tantas coisas me levam ao passado. Como se meu futuro estivesse enterrado nele.

A decisão do retorno não tinha sido fácil. Foi dolorosa, foi traumática, foi cirúrgica. E enquanto o carro ganhava terreno eu me perdia. O destino seria uma nova vida, uma nova chance. Não, não era nada disso. Era minha expiação, necessitava expiar minha culpa. Expiar meus erros. Arrancar dentro de mim o câncer a me roer e corroer, o câncer da culpa.

As estrelas ao longe piscavam e mostravam-se maiores do que em noites normais. A lua nos seguia, nos observava. Logo chegaríamos ao nosso destino.

Amanhecia. 

A cidade que me esperava já era minha velha conhecida e fervilhava. Cidade turística, cidade de tantas etnias. A cidade sorriu-me. Ele continuava a dirigir e dirigir sem se cansar, sem muito falar. O que era raro. Entre nós sempre foi o mais falante. Reclamava do meu jeito calado, sempre em busca do poder sobre mim, se pudesse entraria em minha mente e a vigiaria noite e dia, dia e noite.

A  casa. Diferente da que tivemos, diferente da que vivemos por vários e vários anos, testemunha de todos os nossos conflitos, de todas as nossas dores. Essa, era bonita, chique. Melhor e já mostrava os traços da personalidade do seu novo dono. Assim que a vi, percebi que ele não havia mudado, nada havia mudado.

Ao entrarmos sala a dentro, as chaves do carro foram jogadas em cima da mesa. E ao me tocar novamente ao estender sua mão para meu nariz, novamente seus olhos tocaram os meus e vi no fundo deles, que nada mudaria. Eu expiaria minha culpa, meus pecados estavam a mercê de sua esquizofrênia.

domingo, 28 de setembro de 2014

das penas...

o que tramam os pássaros
na revoada que pia e passa?

ignoram as águas
ignoram as horas

ignoram as mágoas
ignoram as lágrimas

piam e piam e passam
dos olhos, são asas...

dos ecos...

e se ouso
e se pouco

de amor, eu falo
de amor, eu ouço

é de um amor louco
é de um amor torto

ainda fogo
ainda poço

e morto
e morro

voo...

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

in sone...

que fúria é essa
sem nome, tão pressa?

do relógio
não quer as  horas

dos olhos
não quer os sonhos

e mata
sem ser fome

e cega
sem ser sede

que fúria é essa
sem colo, sem dono?

insônia
insônia...

sábado, 20 de setembro de 2014

das lágrimas...


de anseio em anseio
gasto dos olhos, os joelhos

de tão gastos,  tão cansados
não dobram-se, espasmam-se

e choram...

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

terça-feira, 16 de setembro de 2014

dos cortes



e esse cansaço
de tanta poda
de tanta pólvora
de tanta solda

se é corte
que seja breve
que seja torto
que seja ópio

quero mais
o erro alado
o erro ao lado
o erro em asas

das palavras...

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

litígio...

tenho andado muito prosa
sem querer saber das trovas

e vem a poesia a galope
autoritária, a falar em rosas

insisto no vermelho sangue
teimosa, ela quer, pink romance

irritante, irritada, irritável
não sei se sou eu, ou se é ela

nada de entrelinhas
nada de versos

se continuarmos assim
é litígio na certa

oras essa...

ela ri, e nem eu acredito
em minhas promessas...

dos prazeres...



sem ponteiros
sem travesseiros

letras em espreita
letras sem gavetas

num tum-tum-tum
dos dedos

tocam e tocam-se
sem sossego

e escorrem
em êxtase

domingo, 14 de setembro de 2014

O Porão

A escada a minha frente não existia aos meus olhos. Quando abri a porta para o porão foi o cheiro de mofo que me atingiu como uma realidade aconchegante. A mania de preferir as sombras e os escombros aumentava com o passar dos anos. Pudesse ser um  bicho seria um morcego. O bom e velho morcego. Cego e de um radar invejável. 
Com um suspiro em êxtase comecei a descer degrau por degrau, adivinhando-os. As sombras, a escuridão aguçavam meus sentidos. O olfato degustando do mofo, o tato acariciando o corrimão empoeirado, a audição conseguindo alcançar os gritos da madeira estalando sob meus pés e o medo dos ratos correndo, pressentindo a presença do predador mor, eu, o ser humano.

Não era um porão qualquer, era o meu porão. Escondia-me nele desde que consegui ficar longe das mãos de minha mãe e irmãs. E dele saia todas as vezes sob as vozes femininas e horrorizadas.
Na ausência de minha consciência, projetei meu inconsciente no escuro, lúgubre e funesto porão. Onde hoje e sempre sinto-me eu, sinto-me à vontade.
Homens são seres estranhos, voltam-se para si mesmos, gritam com si mesmos, culpam-se pelos erros e parabenizam-se pelos acertos. A idade tem me deixado cínico e mais observador. Percebo nas pessoas a necessidade de criarem casulos, labirintos e porões onde perdem-se e escondem-se chafurdados em comiserações e vaidade. Basta olhá-los nos olhos, e lá estará a ponta do fio de Ariadne que nos levará a um desses compartimentos internos.
O meu compartimento é externo. O porão da casa onde nasci e vivi.

Tenho evitado a luz por tantos anos que somos quase inimigos.

As mulheres de minha família com o tempo se foram.  Não me perguntem como. Seriam longas histórias a serem relatadas. Gosto de manter o passado enterrado e guardado para que em noites de tédio eu possa revirá-lo e senti-lo perto de mim em segredo. 

Tenho pensado nas lápides, como seria estar em uma cova coberta por terra ou por cimento. Seria tão agradável quanto meu porão? Os corpos que enterrei nunca me assombraram, nunca voltaram para contar a sensação dos vermes roendo suas vísceras. Pena. 

E cá estou  em meio aos destroços e desgraças familiares espalhados em três metros quadrados. O cheiro do mofo misturando-se ao da moça já em decomposição no colchão por nós usado há dois dias é simplesmente divino. Assim imagino ser o cheiro de Deus, um perfume de pruridos, carne, medo, ignorância e escuridão, um perfume exalado por uma essência que alimenta-se de devoção . 

Quanta incoerência no corpo estendido diante de mim. Nenhuma gota de sangue, nenhum pulsar, nenhum som, nada. Cadáveres deveriam de continuar a sangrar para coroar sua perfeição.

Antes que o dia nasça, ela e eu, já estamos acomodados, ela no porta-malas do carro e eu conduzindo sua morte, assim como conduzi sua vida. Acelero, tenho pressa ou teremos de enfrentar a luz para preservar minhas sombras... Amém.



quinta-feira, 11 de setembro de 2014

cárcere

é estranho esculpir palavras
sem ceder à elas, suas asas

olham-me de soslaio
olham-me assustadas

entre o branco e o vácuo
olhos outros, não há,

que falta é essa
que eco é esse

tão grito, tão forte,
quicando sem norte

versos em silêncio
um quase epitáfio

asfixia sem lápide
asfixia sem morte

a poesia e o nada...

38


de ave em ave
silenciam -se as cores do dia
e o crepúsculo pia...

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

desejos...

eram turvas
as curvas

eram lascivas
as fugas

eram tenras
as uvas

e um medo
do passo a frente

e um medo
da boca pendente

e o medo
das mãos ardentes

um não
querendo sim

sem armas
sem disfarces

prender as uvas
entre a língua e os dentes

no lascivo
diluir-se em fuga

beber das curvas
águas profundas

e afogar o medo
em corpos que procuram-se...


sábado, 6 de setembro de 2014

Adubo


Não espero de você alguma empatia. Preste atenção, por favor. Se não existe para mim, não espero que exista para mais ninguém. Uma palavrinha com ranço de cabresto inventada  para cercear os instintos. Uma baboseira a mais citada por idiotas que pensam entender pessoas iguais a mim.

Sabe, você não me conhecia mas eu te conhecia. Se empatia para mim não existe, existe algo maior e melhor, existe em mim a capacidade pura e virgem de farejar o que você sente e pensa sem que isso me afete e atrapalhe meu objetivo. Pelo contrário, faço uso e abuso dessa capacidade.

Minha espécie, graças a Deus, é desprovida de sentimentos e apegos. Por não tê-los identifico-os e bem. Juro que meu desejo é de comemorar o gozo que o sangue escorrendo de suas veias para sua carne está me proporcionando. Prolongar e comemorar. Comemorar por vários e  vários dias. Se pudesse te exibiria, exibiria o meu êxtase, o meu poder sobre a matéria. Não me olhe assim... Tenho minha vaidade, meu ego. Orgulho de minha obra.

Acha que sou louco?

Não irá me responder. Nem outros corpos me responderam. Gosto disso. Vejo que ainda resta uma centelha de vida em seus olhos. Interessante. Está demorando um pouco mais. Por quê?
Não, não tente responder. Conserve o que te resta de energia para mim.

Quero continuar a te deleitar com minha sabedoria sem ser interrompido. Onde paramos?
Curiosa em saber como te conheci? Não, não pense bobagens. Não foi em redes sociais. Muito manjado. Para quem não consegue falar está indo muito bem. Um pouco mais e terminaremos. Tenha paciência. Bom demais esse seu sangue escorrendo, deixe-me prolongar meu prazer. Você deu trabalho, não esperava por isso. Miúda, magrela. Mas arranha como gato e dá coice como cavalo. Não devia ter me machucado, tive de te prender antes da hora. Gosto mais quando o processo da caça se prolonga.

Mas, sou magnânimo, te perdoo, está indo bem.

Vamos em frente, antes que... Antes que... Se quiser pode  rezar. Dizem que é bom antes da hora derradeira. Se ele lá em cima te ouvir, mande minhas saudações, um belo trabalho o dele. Corpos e mais corpos a serem ceifados para alimentá-lo. Eis o que sou, minha cara, um servo de Deus. Ofereço o sua alma a ele. E eu... Eu fico com sua carne pulsante, com seu medo que lateja, com seu sangue que brota como flores vermelhas de sua pele onde carinhosamente penetrei minha adaga.

Droga. Outra que me deixa falando sozinho. Pobrezinha partiu sem saber onde a conheci. Fácil, observar, marcar a caça. Fazer os planos e executar.

Não foi difícil atraí-la para meu carro. Um dia ou outro elas aceitam a carona. E agora estava ali em minha cama ao meu sagrado dispor. Finalmente calou a boca. Calou a boca de fato e me deixou em paz. Resmungos, vozes, gritos, gêmidos me incomodam. As pessoas fariam bem umas as outras se evitassem o desprazer de serem ouvidas. Mas, eu admito e agradeço do fundo do meu coração, o imenso e inenarrável prazer. Pouco a pouco tirar de dentro da preciosa carne o que a contamina, retirar todo o peso de anos e mais anos desses corpos é maravilhoso. Um corte, dois cortes, lanhando mais um pouco, um pouco mais. Somente eu, sei e conheço suas verdadeiras faces, sem nenhuma linha de expressão, sem nenhuma emoção. Não há nada mais belo do que o rosto de um cadáver. Nada mais puro. Lamento que assim seja por pouco tempo. Logo se deterioram e perdem esse encanto.

O corpo a minha frente, ainda quente, foi meu cúmplice, me  provocou e acenou com gestos em um ritual conhecido por mim. O que dentro dele havia era um estorvo. Como as pessoas são idiotas, pensam ser mais do que carne, ossos e sangue, não são. Tirando o que dentro delas há, o que resta é  o adubo.  Dizem serem complicadas e são simples. Querem um alozinho, um sexozinho, um noitada, a rotina. Infelizes. Eu sou superior. Livro-os da carga emocional, reduzo-os à matéria, santifico-os pós morte. A terra o que é da terra, adubo.



domingo, 31 de agosto de 2014

das faces


desconstruo-me
sem buscas, sem rumos

e escorro feito leite
em xícara sem fundo

sem raízes, faço das letras
minha cama, minha ilha...

pinço aqui e ali palavras
que foram entrelinhas

mato o que foi inteiro
vivo do que morreu

e entre meus dedos
esmago,  espelhos meus...

sábado, 30 de agosto de 2014

então tá...

não diga que não te avisei
não diga que não te evitei...

eu tentei e você sabe
antes e depois da carne

mas, se é pra ser além...
que assim seja, amém

agora é tão meu o tempo
ontem e hoje num sempre

as máscaras uma à uma,  pisoteadas,
e todo fel deliciosamente inalado

tão longo o caminho riscado
tão longo e por nós, desejado

suas mãos, seus olhos distantes
cuidando dos meus fracassos,

não, não diga que não te avisei
não, não diga que não te evitei...

éramos você e eu
eu e você e mais nada...

eu tentei e tentei e você sabe
se nos machucamos foi nos quases

se, nos achamos, foi no pecado
você sente e  você sabe...

sem imagens
só palavras...

terça-feira, 19 de agosto de 2014

ir e vir...


repetem-se os ciclos
noite e dia, verão e inverno
morte e vida

assim
caminha a humanidade
em círculos...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

andanças...

são nessas visitas minhas
tão íntimas aos meu quartos
onde estilhaço-me...

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

dos rebentos...

num onde
alastram-se
anseios

brota
o feto
do verso

esse
ainda
ao meio

sem saber-se
meu ou alheio
pele ou beijo...

sem fim
sem começo
de joelhos...

sonha
ser da poesia,
as veias...

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

das datas...


se é de pai
se é de mãe

tanto faz,
se, noite ou  dia...

há mãos
há preces

e essa pressa
do pão, da paz

e pés
que caminham

sozinhos...

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

a gosto...

com que rosto
anda o tempo

velho
ou moço?

dizem
dos desgostos

dizem
dos loucos

dizem
dos ventos

dizem
dos lamentos

com tanto gosto
dizem e dizem: é agosto...

domingo, 3 de agosto de 2014

pois é...

e numa overdose
fecham-se meus olhos

é tanta letra
cuspida na tela

é tanta imagem
fazendo promessa

é tanto amor
rimando com flor

é tanta dor
exalando das rezas

é tanta fé
carecendo de rédeas

e eu aqui

sem saber, se rio
ou se choro

ou se, simplesmente
de tudo, debocho...

quinta-feira, 31 de julho de 2014

ao pó...


nascem olhos
tenros, novos
com fome

gulosos
luxuriosos,

a cada gesto
a cada verbo

crescem
escada acima
inferno a dentro

e

a cada erro
a cada acerto

caóticos
tortos

murcham
sem reflexo
sem eixo

secos,
e sem voz
morrem

sós...

sábado, 26 de julho de 2014

das mudas...

do que era incolor
do que era cólera

do vermelho fúria
ao branco que ruge

das vozes em desuso
em mãos aos soluços

das palavras aos murros
aos versos rubros

um nada quase mútuo
olhos e poesia e tudo...

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Navegue comigo...


Deus, dê-me suas mãos,
navegue comigo
Vamos juntos explorar
continentes, mares,
casebres, mansões
Entre os humanos na terra
sondar vossos  lares
Veja os filhos teus,
muitos estão em guerra!

Outros tem a face descarnada
é a fome, avassala-os sem pudores,
Ouça o gemido de vidas abortadas,
Navegue comigo, meu Deus,
O universo é teu....
Se há flores, há dores,
filas de ovelhas a esmolar
Crianças exploradas,
Velhice desrespeitada...

Observe as estrelas, são tuas
Empreste o brilho delas
aos errantes
Deixe o sol iluminar
os descaminhos,
Deus, são filhos teus!
Nos sertões, nas ruas
Todos navegantes

Ah! Os bem sucedidos...
Minoria ou bandidos?
Acredite meu Deus,
Esse mundo é teu
Navegue por ele

Desça ao inferno das almas suplicantes!
Mostre-se aos meninos que se drogam
Mostre-se às meninas que se prostituem!
Mostre-se ao abandono dos animais
Navegue!
Seja menos Deus, misture-se ao homem!

Somos gratos pelas vidas socorridas
crianças em lixos, acolhidas, filhas tuas
Mas não faças disso um milagre!
Navegue! Faça o bem ser normal
Nos envolva com a magia da lua
Seja nosso abrigo natural,
Não me deixe crer
Que Deus é ateu...

terça-feira, 15 de julho de 2014

das safras...

há dias
que letras carrego

em outros, elas,
carregam-me

ora sou carga
ora sou escrava

palavra

sábado, 12 de julho de 2014

37


de réstia em réstia
sobre o cinza do inverno
um sol amarelo

abre suas pétalas

terça-feira, 8 de julho de 2014

36


no frigir dos olhos
na copa e na cozinha
restaram os copos...

e os cães agradecem
a ausência dos fogos

domingo, 6 de julho de 2014

dos esgotos...


ouço vozes
ouço minúcias
ouço a lua

e estaco, quase pêndulo
presa em um meio fio torto
ao sabor do que destoa

o centro, ali ao lado
faz pirraça, faz pouco
de minhas escolhas

e eu,
hermética, cética
isolo-me...

ouço olhos
ouço exclusos
ouço escuros...

sábado, 5 de julho de 2014

das impossibilidades...

o que hei de fazer
com tantos espinhos
que teimam caminhos

pudesse varrê-los
pudesse baní-los

extirpar dos meus pés
a dor de não ter uma saga
onde possa plantar sóis e fé

mas...

se tudo é quase
se tudo é necrose

e se entre os espinhos
encontro, a rosa, a prosa,
o silêncio, a voz e a poesia

não tenho um fazer
não há, não hei..

sábado, 28 de junho de 2014

35


bem-te-vi, bem-te-vi
ecoa o pássaro lá fora
e eu só o canto ouvi

quinta-feira, 26 de junho de 2014

terça-feira, 24 de junho de 2014

das perdas

prenderam o fôlego
olhos, mãos e joelhos

não ousavam os olhos
atravessarem as letras

não ousavam as mãos
apressarem um desfecho

não ousavam os joelhos
a dobrarem-se aos devaneios

prenderam-se ao medo
perderam-se no tempo

segunda-feira, 23 de junho de 2014

das palavras


gosto de palavras novas
gosto de palavras antigas
gosto da palavra, poesia

dentro dela cabem
sangue e água
morte e vida

cura e vício...

quarta-feira, 18 de junho de 2014

dos andrajos

tenho pensado
nos sapatos mortos
que deixei sem pés

nos trapos
e nos farrapos cinzas
ainda vivos

esses que insisto carregar
pra lá e pra cá, acolá
sem ter onde ficar

dia ou outro
enojam-me e em espasmos
tento cuspí-los, vomitá-los

e aqueles sapatos
abandonados dizem-me
tire deles, a fé...

bolinam minha carne
açoitam minhas palavras
insinuam-se em minha escrita

numa vingança ao vazio
ao vácuo, imploram-me
aos andrajos, a lápide...

terça-feira, 17 de junho de 2014

dos ninhos...


espinho a espinho
desconstruí meus ninhos

de vazio em vazio
teci minhas palavras

de palavra em palavra
libertei minhas asas

assim, sem início
sem fios, só fim...

sem pouso
da carne me desprendo

e minha alma
em poesia, voa...

domingo, 15 de junho de 2014

nada...


não sei se de riso
não sei se de choro

um gozo invertido
ao ver-te do avesso

o que era tão formoso
em palavras e frases alheias

hoje, nu e cru
sem os olhos em teias

é feio
é feio

um feio encontrado
no gado marcado

sem face
sem metáforas

sem o corte da faca
sem ser excluído da farra

só mais um
em meio ao nada...

nada

mas...

ando pisando
em entrelinhas
em silêncios

de costas
aos meus erros, meus eus
repetindo tanto faz

se rezo um mantra
em sinagogas de letras
aos pés da insônia

num  paradoxo
a poesia refaz-se
e nega-me um cais

implora-me
as dores e as delícias
dos meus ais...

não tanto faz
só esse tanto fez
a pedir mais e mais

domingo, 8 de junho de 2014

dos sonhos...

insiste a noite
nessa insônia sem fim

dama dos pesares
meu calcanhar de aquiles

como se fossem as horas
palpáveis, tangíveis e táteis...

ao meu redor, caminham
em salto alto, quase agulha

não fecho os olhos
esses alheios ao mundo

não derrubo dos sonhos
os tijolos, os muros

entre os pesadelos
desço, mais fundo

quinta-feira, 5 de junho de 2014

dos fins...


o que me alucina
é não encontrar
para vida, uma rima

e, ser o amor uma bobagem
onde germinam sofismas
em busca da carne

o que me consola
é saber que até as dores
um dia morrem...

um despregar os olhos
das vicissitudes e das mentiras,
ser apenas, cadáver...

e nem é inverno...


tão lascivo
veio o frio

sobe árvores
desce a pele

velho conhecido
dos gatos, dos telhados

a carne espia
quer poesia

em tons cinzas
caminha

faz trapaça
corpos enlaça

de branco
forra a grama

arrepia, lateja
faz-se amante

desejos
e cama...

terça-feira, 3 de junho de 2014

simples assim...

amanhã
visitarei tuas
lembranças

será um hoje
com cara
de ontens

numa brincadeira
de esconde
esconde

esconderei eu,
os olhos  meus
dos teus

mas, se em ti
pousar uma poesia
minha...

nego
e negarei
a autoria

domingo, 1 de junho de 2014

descarne...


não sei onde foi
não sei como foi

sei da trave retirada
sei do vidro quebrado

sei desses meus olhos
que tudo desnudam

e do sarcasmo
da ironia, abusam,

sei dos meus passos
em caminhos contrários

desse cansaço
da mesmice e dos achos

sei

do meu desprezo
seco, ao cubo, com gelo

que laços
e pessoas

navalha

sábado, 31 de maio de 2014

do que sou...


e essa ponte

entre meus olhos
e minha boca

entre minhas letras
e meus pensamentos

entre meu rosto
e o espelho

entre meu corpo
e o tempo

essa ponte

faz-me tropeço

faz-me segredo

faz-me latente

faz-me hoje

faz-me dos defeitos

ciente...

sexta-feira, 30 de maio de 2014

33

há tantas penas
entre o verde e o cinza do dia-
nem só os pássaros piam

quinta-feira, 29 de maio de 2014

à margem...


Letárgicas minhas letras, negam-se aos meus dedos. Fossem cadáveres, mereceriam lápides, mereceriam secas e esturricadas lágrimas. Um retorno ao que me dedicam há dias, ontens e hoje. Ingratas, fazem-se mulheres frias, reviram-se, escondem de mim sua poesia. Poesia? Como  se fosse minha cria, a poesia. Que ignomínia... Não há a posse da poesia. Não há no rosto que se esconde por trás dos nomes a magia de despertar fosse onde fosse, fosse poço, fosse fossa a queima da carne, a ardência da alma onde mora a desonra do que é ser direito, o certo sem avesso. Tudo é gelo, tudo é degredo aos olhos que batem e voltam na lâmina rasa e sem espelho nesse rosto que tenta não ser de si as próprias letras em veios.

E elas, as letras, sabem e encaram-me de cara feia, com maus modos, crianças que tudo veem, que tudo pressentem entre a página branca e longa que estende-se entre meu leito e o concreto do martelo que nega-se a executar ordens sem nenhum deleite, sem nenhum defeito. Posto que perfeita não sou, posto que torta são e sabem as palavras que de mim escorrem quando sem eixo, deixo-as livres e soltas.

Nessa guerra entre o ser e o não ser, perco. Perco o tino, o rumo, o prumo, a rima. Restam-me os passos mancos, as palavras surdas. Não querem a exatidão, não querem os céus, buscam o porão. Buscam entre meus dedos o refugo, o esgoto, o meio vivo, meio morto. O torto.

É nas arestas, é na assimetria, é nos olhos que cavam e escavam imagens em busca do miolo onde a arte encostou suas palavras como se um descarte fosse que mergulho e volto, zonza, tonta. E ali ou aqui, à margem, sempre à margem do que para uma maioria hipócrita e mediocre vive seus dias, enfim enroscada ao doce sorriso das letras que antegozam em meus dedos minha rendição, minha submissão, de cabeça baixa, em transe e palavras em riste, corro riscos, teço rabiscos, arranho e ouço gritos de uma alma torta,  a minha e suas  poesias.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

dos ciclos...


debruça-se um maio
sob uma chuva pálida

obediente
paciente

gota à gota
lava e tinge folhas

o que foi verde
o amarelo tece

o que foi vida
esfarela-se

recolhem-se
mais cedo os pássaros

fecham-se
mais cedo os olhos

é o outono
bolinando maio

é o tempo
que o inverno, espera...

terça-feira, 20 de maio de 2014

insípida


desembaraço meus nós
estico, puxo, vomito erros

estendo o que deles sobra
em varais de arrependimentos

um nada sem gosto, sem graça
recolho, reduzo,  amasso, engulo

eram dos erros
as flores, as cores, o tempero

sem nós
sem caos

sem rumo, sem sal
sigo, a esmo..

segunda-feira, 19 de maio de 2014

poesia...


eu tento ser prosa
degustar das letras
com garfo e faca

da faca, erro o lado
e minhas veias abro
sobre as palavras

nem com o garfo
tenho jeito, escapa-me
e do chão faz leito

 restam-me as mãos,
não, não diria vazias
nelas, sangra, a poesia..

sexta-feira, 16 de maio de 2014

que vergonha...

entre
versos
frios

um fio
de palavras
sem química

costurava
a última
rima

constrangida
fugiu
a poesia


quinta-feira, 15 de maio de 2014

impaciente


há um cio lá fora
não sei se é da gata, ou...
da lua que mia

mas "só", chora...

por que?

e quando vem a tosse
parece querer de mim
arrancar os pulmões

pergunto-me
por que não?

por que
não arrebentar
meus porões?

deixar sangrar
garganta e boca à fora
a carne que me devora

essa a asfixiar a alma
essa a castigar o relógio

por que
não vomitar a vida
que me apavora?

deixá-la escorrer
a mercê de veios famintos
nesse chão que me convida

tão fácil seria
trilhar esse caminho

por que não?
por que não?


quarta-feira, 14 de maio de 2014

dos fiapos


refazer os nós
colar os cacos

quem sabe
juntar os ossos

de um  jeito manco
escalar barrancos

encilhar um corpo
meio vivo, meio morto

feito boneca de trapos
talhada na arte em cortes,

e torta

tropegamente
ir em frente

sexta-feira, 9 de maio de 2014

da paz

queria
das histórias
ou dos contos
o ponto final

fosse de amor
ou de guerra
encontro ou
de espera

fosse de açúcar
ou de sal
de água ou
de terra

tanto faz
só no ponto final
há paz
a paz

quinta-feira, 8 de maio de 2014

das almas


se pergunto aos deuses
de que barro, você e eu
fomos feitos

se  pergunto aos deuses
em que gatos e letras tantas
moram nosso encanto

como de praxe
a resposta é o deboche

são apenas, "achos"

e não acho-me

é no limbo
onde vivo, onde piso
nosso encontro

o resto é febre
o resto é carne
o resto é tato

e ao alcance das mãos
não te acho

não importa
não há janelas
não há portas

acostumada a viver
nesse limbo que me consome
não tenho mais nome

"só" sou almma